segunda-feira, junho 19, 2006

A pianista

Ela abriu a porta, mas só o suficiente para ver quem era.
O rosto encoberto pela fumaça, a mulher dá uma tragada e joga o toco do cigarro no chão, apaga-o com a sola do sapato. O cabelo ruivo com as raízes pretas, a calça jeans puída nas barras e os óculos escuros redondos e grandes. A mulher espera.
A pianista julga permanecer em seu devaneio de outrora, as risadas infantis continuam em sua cabeça a perturbar o silêncio. A sonata, a orquestra, a platéia... Tudo parecia sonho, não sentira seus dedos enquanto tocava, eles flutuaram. E aquela mulher devia pertencer a tal ilusão.
_Alice...
Diz a mulher entre sorrisos. O copo de água que Alice segura cai no chão espatifando-se, e, de repente, tudo se torna real, ela reconhece aquela voz, mas de onde... Não pode lembrar. Os anos pregavam-lhe uma peça, conhecia aquele timbre, não se enganava, porém a quem pertencia? De quem eram os dois olhos negros, que, no momento, encaravam-na como duas jabuticabas maduras?
_Não se lembra?...
E novamente a voz penetra seus ouvidos. A mulher se aproxima e Alice deixa sua mão se desprender da porta, as duas ficam tão próximas que uma pode ouvir a respiração da outra.
_Sou eu, Júlia.
Alice engole em seco, e desta vez, olhando mais atentamente, tirando o peso dos anos dos traços marcados, consegue reconhecer a irmã. No entanto, não podia saber se era a mesma pessoa depois de tanto tempo.
E as risadas infantis voltam a lhe pertubar o sono.

segunda-feira, junho 05, 2006

Enquanto isso, a chuva...

Antes era só saudade, de leve. Depois, de forma nítida, cada momento sem ela, era falta. Os pingos começaram em seu ritmo de lentidão, como sesta apreciada de domingo. Em meio à rua movimentada, pessoas apressadas. Caio volta do trabalho, terno e gravata, segue em seu passo pensativo pisando nas poças recém formadas. A chuva insiste em engrossar as gotas e encharcar a roupa. Os transeuntes desprevenidos se protegem com qualquer coisa, ou correm. Caio vai até a marquise, espectador do cinema diante de seus olhos: os guarda-chuvas e sombrinhas coloridas são abertos e passam depressa com a sincronia de um balé, os carros levantam as águas e a chuva se estabelece num cinza escuro. Enquanto isso, seus pensamentos se perdem lembrando dela...
Da janela, Luiza assiste aos pingos batendo no vidro, vê as pessoas correndo e os carros engarrafados. Perto dela o cão, um labrador cor de caramelo. Porém está só, a solidão a corroia com a amargura de um velho desiludido, fazia alguns dias. Foi numa cena como aquela, se esbarraram na chuva, pela primeira vez Caio e Luiza. Os papeis caídos e estragados, a pasta molhada e ele sorrindo.
Ela continua a mirar a rua, sem saber que ele está logo ali, esperando. Enquanto isso, a chuva...