quinta-feira, dezembro 31, 2009

Das coisas para se esquecer – Parte 1: Nair

Nair perdeu horas naquela manhã procurando os óculos. Sem eles seria impossível ler as receitas do livro, e sem elas mais difícil ainda preparar o almoço. Lá pelas tantas, foi ao quarto pegar qualquer coisa e se deparou com eles, os óculos, intocados na mesinha de cabeceira ao lado da cama, lugar que sempre ficavam quando ia dormir até a manhã seguinte. Com eles entre os dedos, se deu conta de que simplesmente, se esquecera de colocá-los no rosto ao acordar. Pela primeira vez em anos, o hábito matinal fora quebrado, e o pior, dele, nem se dera falta. Às vésperas de completar 76 anos, Nair teve a triste constatação que começava a se esquecer das coisas. Os meses correram, e mais um par de anos, e a cada dia a mais, algumas pequenas memórias a menos. Principalmente as recentes, essas teimavam em não parar na cabeça. O comum era repetir uma pergunta algumas vezes por dia, pois não conseguia gravar a resposta por mais que alguns minutos. Lá pela quinta, ou sexta vez, quem ouvia já respirava fundo antes de responder e, sem paciência alguma, dizia qualquer coisa, pois sabia que mais tardar na hora do jantar aquilo voltaria a ser uma questão. Nair estranhava o súbito mal-humor dos familiares e desconfiava que tinha algo a ver com ela, mas não podia ter certeza. Outro dia, Nair conversava com uma amiga ao telefone, quando essa lhe pediu o número da paróquia, pois precisava falar com o padre. Nair, beata fiel, pediu um instante a amiga e foi procurar, vasculhou por quase dez minutos as gavetas, em cima das mesas, os bolinhos de papel e não encontrou. Disse a amiga que tornaria a ligar assim que achasse e desligou. A filha de Nair colocava o café na mesa, quando ela sentou-se desolada, ainda com alguns papéis na mão, e contou que não sabia onde estava o bendito telefone. A filha colocou um pouco de café na xícara e perguntou se a mãe já tinha olhado na agenda. Não, ela não tinha. Nair ficou com cara de espanto, começava a se esquecer das coisas que escrevia, e dos lugares em que escrevia. Nada de muita importância, mas nomes e datas já não eram seu forte, muito menos recém-conhecidos, a esses tornava a se apresentar toda vez que se encontravam. Porém, vovó Nair ainda era capaz de surpreender filhos e netos ao falar de assuntos que não esperavam fosse recordar: um acontecimento, uma pessoa, uma roupa, um perfume... Sim, poderíamos dizer que a memória da vovó optava em ser seletiva. Escolhia o que poderia ser deletado e o que, por nenhuma razão aparente, cuidadosamente, ficava. No entanto, restava a dúvida: por que a querida vovó Nair, andava tão esquecida ultimamente? No início, ninguém se importava com os pequenos deslizes: hora não se lembrava disso, depois não se lembrava daquilo... Mas como tudo que se repete demasiadamente parece um sintoma, ficou impossível não se preocupar. Os médicos disseram ser normal naquela idade, de se espantar seria o contrário. Envelhecer tinha dessas coisas. E assim sendo, o que fazer além de continuar ouvido as histórias que Vovó Nair recontava e recontava? Nada. Melhor ouvir e fazer como se fosse da primeira vez, pois deixar a doce senhora de cabelos brancos feliz, já valia o dia. Nair nunca achou propriamente ruim envelhecer, julgava ser importante viver bem todas as fases, todas as etapas e todos os momentos, sem desperdiçar nenhum trisco de tempo, e disso não podia reclamar. Definitivamente não se arrependia de nada e muito menos voltaria atrás. O difícil mesmo era suportar a sensação de que, em pequenas porções, partes da sua vida, aos poucos, dia após dia, iam sendo esquecidas. E, não mais que de repente, desapareciam.

4 Comments:

Blogger Luanne Araujo said...

Encher-se e esvaziar-se... Noutro dia, pensei muito na morte, como é constatar que sim, que vou morrer. Mais do que saber, entende? Sentir. E você descreveu um cenário muito bem, me senti meio Nair... Bonito conto.

21:14  
Blogger Carol Teixeira said...

Oieee... Td bem? Passando pra conhecer. E simplesmente, adorei. Parabéns pelo seu cantinho. Te ofereço meu award. Espero tua visitinha. Tenha uma linda semana. Beijosss.

11:37  
Blogger Tricota e Crocheta said...

Não imaginava ler uma história sobre esquecimentos com doçura. Essas coisas doem, mas vc soube fazer com que doessem menos com palavras claras. Imaginei que eu fosse chorar, pois ja vivi isso com avós... mas também esqueci os óculos em casa. É! ...é uma coisa pra se esquecer.
Saudades...

18:00  
Anonymous Anônimo said...

Reconheci uma pessoa muito especial nesse texto. Vc sabe quem. Lindas palavras... Sim... melhor ouvir como se fosse da primeira vez pq não tem nada melhor do que ver a felicidade nos olhos de alguém que se ama muito.

Saudades queria. Saudades infinitas!
Bjos. Marina

06:23  

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