domingo, outubro 07, 2007

O TRAJETO

Ele deletou o recado na secretária eletrônica, acendeu o cigarro, apagou a luz e saiu batendo a porta. Desceu pelas escadas, pois fumava. E no elevador o aviso que proibia, com o círculo vermelho cortando o cilindro esfumaçado.
Na rua, a chuva espantava os passantes. Dos poucos que restavam, o caminhar era apressado debaixo dos guarda-chuvas. Ele ia como quem não se importava, ajeitou um pouco o casaco para aparar os pingos e pronto. Não sabia para onde, na verdade, o motivo da preocupação era outro: encontrar-se no trajeto e não o destino. De modo que, continuar em frente, era o caminho. Percorria. Cabelos molhados, goteiras nos olhos. Passava a ponte, atravessava a rua, observava os carros e quanta água levantavam.
Era o poeta do concreto em meios aos edifícios, coberto de cinza por todos os lados. Andando perdido na noite da tempestade, mas obstinado. O cigarro, morto entre os dedos, ainda levou mais uma vez à boca, e riu da própria tolice, óbvia, ao percebê-lo apagado. Atirou-o na sarjeta com peteleco, e a bituca se foi carregada pelas águas. Certo era o esgoto como fim mais próximo.
Parou do lado de fora de um café e escorou na pilastra. A chuva ainda o atingia dali e disso se agradava. Tirou o maço do bolso e depois de algumas tentativas conseguiu acender outro cigarro. Fumava. Com a sobriedade de um louco em silêncio. Queria se ver satisfeito com as tristezas do cotidiano antigo, agora tudo diferente, era outro. O endereço o mesmo, a mesma cara, com algumas rugas a mais. Porém, por dentro da pele se sentia completamente um estranho, que pulsava inquieto.
Sentou-se no meio fio. Batia os pés na água que corria. Encharcado como um todo, nesse momento. Por dentro e por fora. Respirou fundo, como se tivesse prendido o ar por muito tempo, e só percebesse de repente. Reparou numa janela acesa, já era madrugada agora, imaginou toda a vida que continha. Invejou, sem saber por que, qualquer pessoa que existisse ali. Não queria mais ser quem era. Apenas isso. E continuou.
Foi pelas calçadas alagadas, pisando em poças já pisadas. Andaria mais, o tempo que fosse necessário, até descobrir o caminho. E entre um e outro semáforo aberto, que cruzava, acendia mais um cigarro. Solitário nas ruas desertas da cidade grande, na noite chuvosa que mantinha as pessoas em casa. As reflexões eram muitas, se debatendo em polvorosa na cabeça. Caminhava como se delas se afastasse. Um fugitivo perseguido de perto. Inclementes, elas se mantinham a distância da sua própria sombra, e vez por outra o alcançavam.
Parou, de súbito. E uma vertigem que se debateu logo em seguida, quase o derrubou no asfalto. A morte encerra. Ela havia morrido, e metade da cama estaria desocupada dali em diante. E todas as pequenas coisas da casa a lembravam. Memórias que o sufocavam, os cômodos ainda respiravam o seu cheiro, o perfume que se esvaia no travesseiro. Ele ficava. Doido por uma fisgada constante, tomado por um vazio crescente.
Talvez a própria morte estivesse passeando ali em seu guarda-chuva vermelho. Sorrateira, esperando por uma distração para o levar também. Soprando em seu ouvido o recado que veio na secretária eletrônica, para lembrá-lo que talvez valesse a pena ir com ela.
Segurava o maço vazio. Mais adiante imaginou vislumbrar o espectro da Dama Vestida de Negro. E correu naquela direção sem se preocupar com a vida. Correu para um abraço de encontro derradeiro com a morte. Na noite vazia, na chuva solitária, que aplacaria a dor.
Não ouviu a buzina. Era um atleta obstinado tentando alcançar o destino escolhido. O corpo estendido no chão cinza, coberto de água. Não se formou multidão, quase ninguém por ali àquela hora. Estava tudo bem agora. Vida demais, algumas vezes, é um fardo extremamente pesado. E ele estava leve, por fim.