quinta-feira, dezembro 27, 2007

Das histórias que ele contava


Ele costumava dizer que na outra vida tinha sido cachorro. Porque na outra, anterior dessa ainda, tinha sido padre. E que como padre tinha sido tão mal, avarento, mulherengo. Que na encarnação seguinte veio como cachorro, para aprender, de uma vez por todas, que ser humano é privilégio e coisa rara em matéria de encarnação. Como cachorro foi manso, bonzinho mesmo. E sofreu virando lata. Porque não era qualquer cachorro, para ser lição bem dada, tinha que vir um vira-lata e não cachorro de madame não. E como vira-lata passou frio, ficava sozinho nas ruas, na chuva e ventania. Morreu velho e pestilento, sem dono ou amigo. Mas valeu a dura vida, porque depois de cão, ganhou direito, conquistado, de descer homem novamente. E sem batina dessa vez, se fez homem de direito, advogado. Íntegro, correto, apreciador da vida e piadista nas horas vagas. Virou também professor, de história, como as que contava. E algumas vezes político, escritor, marceneiro, leitor compulsivo. Meu pai. Ele me dizia que era por isso que se identificava tanto com eles, os cachorros. E não foi só uma vez que levou sua cadelinha para a sala de aula. Veja bem, cachorro não, porque essa era fêmea, cadela então. Ele não achava justo deixá-la sozinha em casa e os alunos achavam graça. Teve o diretor que intrometer e dizer que escola é lugar de gente, e: por favor professor, bicho é bicho. Ele não partilhava da mesma idéia, mas... E contava outra também, a do seu amigo canino, que visitava de tempos em tempos. O gaúcho. E meu pai levou o gaúcho para o fórum e depois para almoçar na casa da minha avó. Até presenteou a secretária, com um berne que encontrou no bicho, dizendo ser um brinco. E o grito que a mulher deu, com o verme na palma da mão. Me dá vontade de rir. Esse era o meu pai. Espero que na próxima venha como passarinho.

3 Comments:

Blogger Suzana Zana said...

Eu ia passar sem dizer nada, mas aí eu tremi,abriu um vaziiiiio e meus olhos embaçaram pq senti em você pelo seu pai o que sinto pelo meu avô, e não tem nome exato, se a gente chama de amorinfinitomaiorquemundointeiro é por falta de palavra que defina mesmo...

03:25  
Anonymous Anônimo said...

que maravilha poder lembrar de tanta coisa boa dessa pessoa única que é seu pai... muito especial mesmo!

11:47  
Blogger mg6es said...

Ah, menina Marcela, que prosa, a tua, hein? O olho bate e já respinga poesia na tela... lindo, lindo o teu texto, e posso imaginar, talvez nao, o qto de sentimento está carregado ali, naquela pureza...

brigado pela visita, viu?

feliz 2008 pra vc!

bjo.

20:30  

Postar um comentário

<< Home