quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Alice


Alice não pensou que seria diferente, do outro lado tudo parecia exatamente igual. Os objetos, como também ela, talvez estivessem um pouco invertidos, e aquele relógio mais ao canto, poderia dizer que ensaiava derreter-se e escorrer pela parede branca. Mas de resto, o perigo que representava era o mesmo: a familiaridade do ambiente conhecido. E tão logo enfadou-se da calma entediante daquela tarde ensolarada, resolveu, primeiro arriscar uma das mãos, e ver se a passagem imaginada era de fato uma possibilidade. E o braço ficou dividido, metade de um lado, metade do outro. Com uma expressão de “Oh!” resolveu experimentar a segunda, e em seguida uma perna. Quase sem perceber, de uma sugada súbita, Alice atravessou o espelho. Do outro lado, não havia coelho algum, porém todo o antigo reflexo se transvestia em algo novo, completamente inesperado e simplesmente maravilhoso... O desconhecido mundo das cores que mudavam de cor num piscar de olhos, dos objetos que caminhavam pela casa, a estante mais lentamente a fez lembrar a tartaruga do jardim. Percebeu que a janela não dava para o lado de fora, e sim o contrário, como se tudo lá fora, espiasse secretamente ali dentro. Sentiu-se parte da paisagem. E assim que ouviu a voz de alguém que a chamava, muito ao longe: “Alice...” “Alice...” avistou uma corredeira de água, que caia sei lá pra onde e resolveu pegar uma carona. Foi engolida pelo misterioso mundo dos devaneios extraordinários. Através do espelho Alice era outra. Tão óbvio como dizer que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

No meio do redemoinho



Joguei um pensamento num redemoinho,
como um barquinho feito de pedaço de jornal,
que foi rodando, circundando a bacia grande,
a água desfazendo-o aos poucos,
ele se aproximando do centro.
Eu olhava-o sem menção de interferir,
segurava a bacia diante do rosto,
com a curiosidade que é inevitável,
mas que não tem coragem suficiente para se manifestar.

A água desfez o jornal,
que foi parar no fundo da bacia,
antes que o pensamento chegasse ao destino, olho do redemoinho.
Mais tarde observando o que restava no acinzentado assentado
do recipiente que ainda segurava com vacilantes mãos,
não pude chegar à conclusão nenhuma.
Salpiquei o resto do jornal empapado nos vasos de flores da varanda,
e dei como suficiente a força que o moveu do princípio.

Reguei os brotos com a água da bacia,
imaginando que as próximas flores nasceriam mais belas.
Torci para que despontasse algum botão azul como o céu,
o que já seria um pequeno milagre.
E mais que um pensamento, o nascimento, a renovação, a vida...
O que restasse daquele movimento resignado
seria sugado pelas raízes.
E na minha calma solitária, prometo seguir buscando
outros pensamentos, redemoinhos
e principalmente pequenos milagres.